quinta-feira, 19 de março de 2009

Retornando

Retorno depois de um longo período de repouso para reciclar as idéias. Agora, os desdobramentos da crise vão ficando mais claros. Como era de se esperar sob o capitalismo, estão socializando as perdas. Como era de se esperar, ganham - ou não perdem - os que detinham o poder político, o Estado: a finança e seus intelectuais orgânicos. Como diz Michael Hudson, no texto abaixo: "Há duas perguntas que se tem de fazer quando se vê em andamento uma campanha política. Primeiro: qui bono – quem se beneficia? E, segundo: por que agora? Minha experiência ensina que a oportunidade, o timing, é quase sempre o fator-chave para que se entenda a dinâmica de uma campanha política.". O mesmo método pode ser empregado para entender as "causas" da crise. Crise que tem um componente de negócio. Leiam, recomendo.



AIG: a verdadeira conspiração

Michael Hudson, em 18/3/2009, no site Counterpunch – http://www.counterpunch.org/

Por que, afinal, a 'mídia' mostra-se tão surpresa com a descoberta de que há ganância sem limites no setor financeiro? Todos os canais de televisão e todos os jornais dos EUA, de esquerda e de direita, só falam desses bônus, em todas as manchetes, há dois dias. Pode soar estranho, mas a indignação dos cidadãos contra os bônus de 135 milhões de dólares devidos pela AIG é presente caído dos céus para Wall Street, incluídos os canalhas.

Algo soa falso, nesse ultraje generalizado. Não parece haver alguma coisa super inflada na vociferante indignação do Senador Charles Schumer e do Deputado Barney Frank, dois garotos-propaganda muito ativos, ao longo de todo o ano passado, a favor de dar-se aos bancos tudo que os bancos pedissem? E o presidente Obama não parece estar encontrando algo que afinal parece poder criticar abertamente, como se aí estivesse algo que sinceramente considera mal feito por Wall Street (embora não tudo)? Até o Wall Street Journal entrou na dança da indignação.

O Estado, ao salvar a AIG, disse o WSJ, "está usando essa empresa como sistema de vasos comunicantes pelo qual salvará outras empresas.” É verdade: há muito mais ganância envolvida aí do que alguma específica ganância 'pessoal' dos diretores da AIG.

A AIG deve muito mais a outros agentes – em Wall Street e em todo o mundo – do que o valor de seu patrimônio. Isso levou a empresa à insolvência.

E a oposição popular começa a aumentar, porque muitos começam a perceber que Obama e McCain podem ter operado juntos para apoiar a injeção de dinheiro nos bancos que, em retrospecto, já chega a trilhões e trilhões e trilhões de dólares jogados pelo ralo. Não, de fato, completamente pelo ralo, é claro – mas dólares dados aos especuladores financeiros que apostavam no lado "mais esperto" das jogadas financeiras erradas da AIG.

“O pessoal de Washington deseja focar a questão nos bônus, porque assim a ira popular atinge atores privados,” o Journal acusou em editorial, dia 17/3. Mas, em vez de explicar que assim se salvam os especuladores de Wall Street, que receberam mil vezes mais do que o valor dos bônus hoje contestados, o jornal culpa os suspeitos de sempre: o Congresso.

Esquerda e direita nada veem. Só diferem quanto ao alvo contra o qual induzem os cidadãos a dirigir sua ira!

O problema verdadeiro, que se oculta sob a indignação generalizada contra os 135 milhões de dólares dos bônus da AIG é outro: essa soma é menos que 0,1% – é um milésimo! – dos 183 BILHÕES que o Tesouro dos EUA deu à AIG como meio para que o dinheiro chegasse a outras empresas.

Essa soma, mais de mil vezes superior ao total dos bônus para os quais a atenção dos cidadãos está sendo convenientemente desviada pelos lobbystas de Wall Street, não ficou com a AIG.

A verdade é que há seis meses a imprensa independente e muitos congressistas tentam descobrir para onde esse dinheiro REALMENTE foi. Bloomberg abriu um processo para investigar e tentar descobrir. E, mesmo assim, foi detida por um muro de silêncio.

Finalmente, domingo à noite, dia 15/3, o governo, afinal, liberou os detalhes – terrivelmente embaraçosos. O maior credor da AIG é exatamente o mesmo que os boatos já indicavam: Goldman Sachs, o banco de Paulson. Tem 13 bilhões de dólares a receber, em nome de outras empresas credoras. Assim, o quadro começa a esclarecer-se.

Em setembro passado, Paulson, Secretário do Tesouro, funcionário do banco Goldman Sachs, ofereceu um plano de três páginas, rascunhado, com sua proposta de "resgate". O plano especificava que, fizessem o que fizessem o próprio Paulson e três outros altos funcionários do Tesouro (incluindo, portanto, também subordinados de Paulson, todos do banco Goldman Sachs), nenhum deles poderia ser acusado de crime ou conduta inidônea; evidentemente, tampouco poderiam ser processados. Essa exigência enfureceu o Congresso, que rejeitou a primeira encarnação do plano de "resgate".

O que se vê hoje é que Paulson tinha boas razões para incluir a cláusula que impedia qualquer bloqueio de fundos que o Tesouro viesse a injetar na AIG. A indignação popular deveria focar exatamente nesse ponto.

Em vez disso, as vacas-madrinhas do Congresso, que conduziram todo o processo de aprovação da legislação de resgate – Obama incluído; ninguém esqueça que, na noite do debate de campanha, o da 6ª-feira, Obama manifestou-se fortemente a favor do terrível plano de Paulson – aí estão, hoje, na televisão, a chamar a atenção do público para os "bônus dos executivos"... não para tudo que a própria AIG recebeu.

Há duas perguntas que se tem de fazer quando se vê em andamento uma campanha política. Primeiro: qui bono – quem se beneficia? E, segundo: por que agora? Minha experiência ensina que a oportunidade, o timing, é quase sempre o fator-chave para que se entenda a dinâmica de uma campanha política.

Quanto a quem se beneficia: o que ganham Obama, o sen. Schumer, o dep. Frank e outros patrocinadores de Wall Street, com essa indignação popular inflada pela imprensa? Para começar, quanto mais indignados se mostrem, mais aparecerão como moralizadores do setor financeiro e bancário, não como seus agentes lobbystas, inventando alternativas e mais alternativas que resolvam os problemas imediatos dos bancos. Por isso a AIG cuidou de agitar a água, para que não se pudesse ver onde apostava as fichas de sua lealdade política. Assim, hoje, ainda posa como "parceiro honesto" e assim continuará, quando, dentro de algum tempo, outra vez fizer desaparecer mais alguns poucos trilhões de dólares, consumidos nas campanhas eleitorais de seus candidatos e nas empresas de outros grandes doadores de campanha.

Quanto ao timing, acho que está respondido. A onda de indignação contra os bônus da AIG já distraiu a atenção popular. Ninguém está pensando nas demais empresas às quais chegou o dinheiro que a AIG recebeu (183 BILHÕES de dólares, em repasses do Tesouro).

Há quem diga que a soma "final" que chegará às empresas através da AIG chega a 250 bilhões, se o sen. Schumer, o deputado Frank e Obama prestarem todos os muitos serviços que Wall Street ainda espera deles, no próximo ano e, provavelmente, adiante.

Para que tudo funcione – ao mesmo tempo em que mitigam a indignação popular que cresce contra as operações de 'resgate' – é preciso que mantenham exatamente a pose em que estão hoje. É um exigente exercício de fingimento.

A moral da história é: quanto maiores as lágrimas de crocodilo que chorem sobre os bônus individuais pagos pela AIG (que são legais, explicáveis e declarados ao fisco e estão, portanto, do lado saudável dos negócios da AIG, e nada têm a ver com os esquemas-Ponzi & outros), mais efetivamente desviarão a atenção pública para bem longe dos 183 BILHÕES; e mais bem posicionados estarão, todos, para torrar mais dinheiro público (bônus do Tesouro e depósitos do Fed) em suas caridades financeiras favoritas.

Temos de ir atrás do dinheiro DE VERDADE que foi dado à AIG – os 183 BILHÕES!

Sei perfeitamente que esse dinheiro já desapareceu e que não haverá meio de o vermos outra vez, e que ninguém o extrairá das empresas que sabiam que Alan Greenspan e George Bush e Hank Paulson estavam empurrando a economia dos EUA, montanha abaixo, numa montanha de hipotecas irrecebíveis, derivativos e uma balança de pagamentos inequilibrável, tudo junto numa só bola de neve rolando ladeira abaixo, com obrigações e dívidas (CDOs), um completo cassino... cujas apostas eram seguradas e resseguradas pela AIG.

Esse dinheiro já foi sifonado para bem longe do Tesouro. Para fazer esse trabalho, lá estavam, em todos os postos-chave do governo, os representantes dos mesmos bancos e AIGs, todos com funções específicas.

Mas... mesmo assim, temos de tentar. Vamos lá, recuperar esse dinheiro!

O Sen. Schumer disse aos que recebam bônus da AIG, que o fisco os perseguirá e acabará por arrancar-lhes o dinheiro de um modo ou de outro. De fato, se decidir ir, o fisco pode também perseguir todos os demais beneficiados pelos 183 BILHÕES de dólares, de que ninguém fala.

Basta, para tanto, reinstituir o imposto sobre a propriedade e subir as taxas sobre lucros marginais e sobre a riqueza, repondo-as no nível (já reduzido) em que estavam na era Clinton [orig. re-instate the estate tax and raise the marginal income and wealth-tax rates to the (already reduced) Clinton-era levels].

Todo o dinheiro pode ser recuperado. Isso, exatamente, é o que Schumer, Frank e outros não querem que a opinião pública discuta e descubra. Por isso oferecem-lhe hoje, o circo dos bônus da AIG. É a mesma história de sempre: fazer as pessoas falarem sobre tudo o que não interessa a elas... e apagar, de todas as discussões, tudo o que é realmente importante.

Michael Hudson foi economista de Wall Street. É pesquisador da University of Missouri, Kansas City (UMKC). Escreveu, dentre outros livros, Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (new ed., Pluto Press, 2002).