terça-feira, 18 de junho de 2013

18/06/2013

Saturação e projeto

  •  Editorial da Carta Maior




A rapidez e a abrangência dos acontecimentos em marcha turvam a compreensão mais geral do que se passa no país.

Sentenças frívolas e ligeirezas interessadas tentaram instrumentalizar o aluvião desregrado, comprimindo-o entre as margens de uma canaleta estreita.

Foram atropeladas.

A mídia conservadora encabeça a série dos revezes.

Movida inicialmente pelo indisfarçável objetivo de desgastar gestões progressistas – na esfera municipal e federal— os veículos conservadores foram rapidamente desalojados da carona desautorizada.

Da sofreguidão convocatória partiram para o linchamento dos ‘vândalos’.

Em seguida, foram atropelados pela truculência repressiva, acobertada, no caso de São Paulo, pelo governo estadual que apoiam.

Recuaram, entre estupefatos e perplexos.

O que se viu nas últimas horas espraiou essa mesma perplexidade nas diferentes dimensões da vida política e partidária.

Em 11 capitais, milhares foram às ruas.

Os 20 centavos que motivaram a mobilização original em São Paulo , no dia 6 de junho, tornaram-se ainda mais irrisórios diante da abrangência e da intensidade do que se vê, 12 dias depois.

O que está em jogo é muito mais do que caraminguás.

As ruas requisitam uma nova agenda política para o Brasil.

Não significa desqualificar conquistas e avanços preciosos dos últimos anos.

Mas a história apertou o passo. Talvez até porque a musculatura do percurso agora o permite.

Mas a verdade é que as engrenagens e canais disponíveis não souberam interpretar o vapor acumulado nessa marcha batida.

Um viés economicista pretendeu resolver na macroeconomia – à frio – aquilo que pertence ao escrutínio permanente da democracia: as escolhas do futuro e os sacrifícios do presente.

Restritas, em grande parte, à negociação parlamentar, essas escolhas foram blindadas com o ferrugem dos interesses consolidados.

Com os desvios sabidos e as consequências conhecidas.

As ruas requisitam um aggiornamento da agenda política brasileira.

A inauguração de um novo ciclo histórico depende de programas e projetos que reflitam esse sentimento difuso que brota de norte a sul.

Saturação diante do caos urbano.

Angústia coletiva com o definhamento da dimensão pública da vida.

Opressão da existência individual, sobrecarregada de demandas coletivas ainda não contempladas.

Insensibilidade da representação política tradicional diante do grito entalado no fundo do peito de milhões que sacolejam diariamente nos ônibus e metrôs lotados.

Tudo isso e muito mais que isso.

No capitalismo globalizado não temos mais o 'privilégio' do sofrimento exclusivamente local.

A ordem neoliberal tornou-se uma usina de desordem urbi et orbi.

Líderes não lideram.

Mercados mandam. Governantes obedecem.

A soberania nacional tornou-se intrinsecamente subversiva e disfuncional. Ao mesmo tempo e com igual intensidade.

Os instrumentos convencionais de escrutínio coletivo não respondem aos estímulos.

As urnas decidem; o dinheiro desautoriza. A mídia abjura.

Os fundamentos do sistema perderam a aderência da sociedade.

Como um trem fora dos trilhos, o que seria o fim da História forma hoje um comboio desgovernado, que marcha ora na inércia, ora fora dos trilhos.

Mas não cai. E não cairá por si.

A liderança do processo brasileiro está em aberto.

Mais que isso.

A ausência de uma plataforma capaz de dar unidade e coerência a aspirações fragmentadas e avulsas pode asfixiar o que as ruas tentam dizer.

Vem da Espanha reluzente de protestos na Praça do Sol um alerta desconcertante.

Madri e Barcelona consagraram-se como o epicentro da indignação global.

Desde 15 de maio de 2011, quando o 'Democracia Já' convocou uma manifestação na Praça do Sol, até os protestos em 92 países, em 15 de outubro de 2011, passaram-se fulminantes cinco meses de ascensão linear das ruas.

A passeata original deu lugar a um acampamento formado por um mar de indignados.

A ocupação na Praça do Sol resistiria por 79 dias.

O termo 'indignado' globalizou-se.

Surgiu o 'Ocupe Wall Street’, que mirou com argúcia o alvo da indignação: o dinheiro sem pátria e a pátria rentista sem fronteira, mas detentora de governos e Estados.

Em outubro de 2011, o sentimento nascido na Praça do Sol tornou-se o novo idioma político global, compartilhado por um milhar de cidades em todos os continentes.

Mas nem por isso imune às sombras.

No momento em que as praças rugiam a insatisfação de milhares de vozes, o voto popular consagrava nas urnas o Partido Popular, de Aznar.

A cepa herdeira do franquismo obteve uma vitória esmagadora nas eleições espanholas de 20 de novembro de 2011.

A votação recebida pelo conservadorismo, que hoje esfola e sangra o povo espanhol, estendendo o desemprego a 52% de sua juventude, garantiu-lhe, ainda, maioria folgada no Parlamento.

O paradoxo do 'sol e da escuridão' não pode ser esquecido, nem minimizado pelo frescor da indignação que ecoa agora de uma dezena de capitais do país.

Hoje, ninguém é de ninguém.

Em política, como dizem, com razão, suas 'raposas', não existe vácuo.

Na Espanha, a vitória eleitoral do ultra-conservadorismo, em 2011, só foi possível porque a abstenção, sobretudo jovem, atingiu proporções epidêmicas no berço mundial dos indignados.

A exemplo do que ocorreu na Espanha, nos EUA e, mais recentemente, na Itália , em algum momento os indignados brasileiros serão chamados a refletir - talvez precocemente - sobre as escolhas do poder.

O poder de Estado.

Os compromissos que a luta pelo poder impõe.

A impossibilidade de ignorá-la; e, sobretudo, a escolha da melhor estratégia para pautar o seu exercício, a cada movimento da história

Postado por Saul Leblon às 04:27

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Amigos, volto a ativar o Blog com uma bela análise de Saul Leblon, publicada no site Carta Maior, sobre os protestos contra o aumento das tarifas de transporte em São Paulo. Uma análise que serve para qualquer metrópole do Brasil, basta um comando de substituição de palavras: onde se lê São Paulo substituir por Porto alegre, por exemplo.
Boa leitura.

A resposta é mais democracia

Saul Leblon - Carta maior 12/06/2013
   

Não enxergar o elo entre as ruas e o ciclo histórico costuma ser fatal às lideranças de uma época.

Acreditar que o elo, no caso dos recentes protestos em São Paulo, está no aumento de 20 centavos sobre uma tarifa de transporte congelada desde janeiro de 2011, é ingenuidade.

Supor que a ordenação entre uma coisa e outra poderá ser restabelecida à base de cassetetes e pedradas é o passaporte para o desastre.

Desastre progressista, bem entendido.

A lógica conservadora nunca alimentou dúvidas existenciais ou políticas quanto a melhor forma de manter o caos nos eixos.

Esse é um apanágio do seu repertório histórico.

O colapso do trânsito, inclua-se nesse desmanche o custo e o tempo despendidos nos deslocamentos, é apenas o termômetro mais evidente de um metabolismo urbano comatoso.

Cerca de 1/3 dos paulistanos, aqueles mais pobres, residentes nas periferias distantes, levam mais de uma, a até mais de duas horas no trajeto da casa ao trabalho.

Os tempos indicados são referentes à ida; não consideram o gasto no retorno.

Os dados são de pesquisa recente do Ibope.

Não se produz uma irracionalidade desse calibre sem um acumulo deliberado.

Estudos do Ipea reiteram a piora nas condições de transporte urbano das principais áreas metropolitanas do país desde 1992.

O Brasil tem a taxa de urbanização mais alta em uma América Latina que lidera o ranking mundial nesse indicador, diz a ONU.

O país concluiu a transição rural/urbana em três décadas, açoitado pela política de modernização conservadora do campo.

Isso se fez sob a chibata de uma ditadura militar .

E não poderia ter sido feito exceto assim.

A virulência do Estado ditatorial fez em um terço do tempo aquilo que as nações ricas levaram um século para realizar.

A coagulação da insensatez na atual ‘imobilidade urbana’ reflete o saldo de perdas e danos dessa marcha batida da história.

O crescimento populacional desordenado das grandes cidades, agudizado pelas referidas migrações é um dos alicerces da ruína.

Ancorada na omissão pública de décadas, a expansão irracional e especulativa da mancha urbana ganhou vida própria.

Com os desdobramentos logísticos sabidos: aumento das taxas de deslocamento e motorização; explosão dos congestionamentos e do custo do transporte na vida da cidade e no bolso de cada cidadão.

Não é figura de retórica dizer que esses ingredientes acionam o pino de cada bomba de gás lacrimogênio e faíscam o pavio de cada enfrentamento irrefletido nas batalhas campais registradas na cidade de São Paulo em menos de uma semana.

Repita-se: o conservadorismo tem certezas esféricas quanto a melhor forma de lidar com a nitroglicerina social contida nas cápsulas de concreto que ergueu no país nas últimas décadas.

Suas escolhas não podem ser as mesmas das forças progressistas.

O nivelamento regressivo acontecerá caso a inércia política ceda o comando dos acontecimentos à lógica da violência.

No caso dos protestos em São Paulo, a responsabilidade da autoridade municipal é superlativa.

Cabe-lhe reafirmar o divisor entre a gestão progressista de uma sociedade e a visão conservadora sobre os seus conflitos.

Carta Maior saudou a vitória de Fernando Haddad em 2012 por entender, como entende, que ele representa o resgate do cimento da democracia na reconstrução de São Paulo.

Mais que isso.

Por entender que a sorte de São Paulo sob a liderança da nova administração marcará o destino da agenda progressista brasileira no período em curso.

A maior metrópole latino-americana constitui um gigantesco laboratório de desafios e recursos.

Tem a escala necessária para gerar contracorrentes vigorosas, a ponto de sacudir e renovar a agenda da esquerda brasileira, após mais de uma década no comando do país.

A deriva em que se encontram os serviços e espaços públicos da cidade é obra meticulosa e secular de elites predadoras.

Ao longo de décadas, a Prefeitura consolidou-se aos olhos da população como um anexo dessa lógica expropriatória, quando deveria funcionar como um escudo do interesse coletivo.

Incapaz de se contrapor à tragédia estrutural que marca a luta pela vida em São Paulo, tornou-se uma ferramenta irrelevante aos olhos da cidadania.

A tragédia se completa com o descrédito da população em relação ao seu próprio peso na ordenação institucional da cidade.

Daí para acender uma espiral de enfrentamentos bastam 20 centavos de diferença na tarifa.

Sim, há outras nuances e interesses entrelaçados ao destaque esquizofrênico com que a mídia convoca e, depois, alardeia o caos a cada protesto.

Tais motivações são as mesmas que fizeram do tomate um astro olímpico na modalidade ‘descontrole dos preços’, há menos de um mês.

As mesmas que hoje alardeiam ‘a explosão’ do dólar – e, ontem, denunciavam o ‘populismo cambial’ e os malefícios, verdadeiros, do Real sobrevalorizado.

Essas motivações exercitam sua sofreguidão cotidianamente na mesmice de uma mídia que se esboroa sob o peso de sua própria irrelevância jornalística.

A resposta da Prefeitura de São Paulo aos protestos não deve se pautar pelos uivos do jogral conservador.

Não se trata, tampouco, de conciliar com a violência gratuita.

Mas, sim, de encarar as manifestações como um mirante privilegiado para fixar uma nova referência na vida da cidade.

Qual seja, a de calafetar o abismo conservador que predominou secularmente na relação entre a Prefeitura e os moradores da metrópole, sobretudo a sua parcela mais pobre.

O trunfo do prefeito Fernando Haddad é ter sido eleito para isso.

Ele tem legitimidade para subtrair espaços à engrenagem opressora e devolve-los a uma cidadania há muito alijada das decisões referentes ao seu destino e ao destino do seu lugar.

Um salto de qualidade e intensidade na participação democrática na gestão da cidade.

Essa é a resposta para a fornalha da insatisfação, da qual os incidentes de agora podem representar apenas um prenúncio pedagógico.

São Paulo é o produto mais representativo do capitalismo brasileiro.

Um labirinto de contradições, uma geringonça que emperra e se arrasta, desperdiça energia e cospe gente enquanto tritura e refaz o seu concreto de desigualdade.

Não há solução administrativa ou orçamentária imediata para o caos deliberadamente construído aqui.

A resposta à lógica que sequestrou a cidade dos seus cidadãos é devolvê-la a eles fortalecendo os canais existentes e abrindo outros novos, que dilatem o seu discernimento e a capacidade de erguer linhas de passagem entre o presente e o futuro.

A alternativa é a anomia, eventualmente sacudida de gás lacrimogênio e pedradas.

(*) NR: a menção ao uso de coquetel molotov nas manifestações foi suprimida do texto por se tratar de informação divulgada pelo aparato policial, sem comprovação até o momento (12/06/2013; 23h51)



sexta-feira, 30 de setembro de 2011

QUEM AMA PROTEGE

Valor - Carlos Lessa  professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ

Quero felicitar a senhora presidente da República por ter lançado em discussão a reinstalação da Contribuição Provisória sobre as Movimentações Financeiras (CPMF). A Constituição de 1988, ao criar o conceito de orçamento de seguridade social, manteve a base salários e a ampliou, potencialmente, com contribuições a serem instituídas sobre lucros e faturamento das empresas. O orçamento de seguridade englobaria os gastos previdenciários, de saúde e de assistência social, mas, de forma cruel, foi descaracterizada essa proposta dos constituintes.

As contribuições sociais, criadas como formas de tributação do governo federal, foram desviadas para a caixa única e o superávit primário a serviço dos pagamentos de juros. A área de saúde - pressionada pelo crescimento demográfico, pela elevação da idade média de vida e pela ansiedade popular por melhoria da qualidade dos serviços preventivos de saúde - foi beneficiada pela CPMF. Entretanto, o buraco negro dos juros atraiu para o caixa único e superávit primário os novos recursos tributários criados pela CPMF. O desvio da finalidade social foi a justificativa formal para a extinção da contribuição.
Quero confirmar as palavras da presidente. A CPMF tributa, com custo administrativo baixo, todas as transações financeiras e, ao fazê-lo, explicita todos os que realizam essas transações. Assim sendo, põe a nu laranjas, laranjinhas e laranjais, ou seja, identifica especuladores com transações financeiras. Houve um erro social em tributar a movimentação do salário; deveriam ser isentas as primeiras transações financeiras com os salários. Nesse caso, uma "CMF" seria extremamente justa, pois quem faz transações financeiras frequentes e crescentes são os grupos de média e alta renda; quem vive disso são os especuladores nacionais e estrangeiros viciados em juros e ganhos na arbitragem de papéis financeiros. Lamentavelmente, a presidente teve que recuar. O povão não apoiou a CPMF porque está escaldado pelo desvio sistemático dos recursos, que deveriam alimentar as políticas sociais, para o pagamento de juros e vazamentos de corrupção.
No momento, a presidência da República está submetida ao bombardeio de forças conservadoras - ideologicamente contrárias à industrialização e sustentadoras dos interesses de importadores de veículos - que a acusam de reinstalar o protecionismo industrial. A mídia denuncia o protecionismo brasileiro como um "pecado"(?!), mas esquece que todas as atuais potências do mundo praticaram protecionismo.
Os EUA, maior potência mundial, foram intensamente protecionistas de sua industrialização, e ainda hoje praticam, de forma mais evidente, a proteção de sua produção agrícola e "subsidiam" o avanço científico e tecnológico derivado do maior orçamento militar do planeta, indo da ruptura diplomática à guerra aberta para proteger seus interesses. A China, como potência emergente, pratica, de forma disfarçada, um protecionismo ultraeficiente. As grandes nações europeias e o Japão também praticaram protecionismo durante décadas de suas histórias industriais e protegem de forma explícita suas atividades agrícolas. O discurso contra o protecionismo é o discurso das nações industrializadas e dominantes.
O Brasil cresceu sua economia sem parar, entre 1930 e 1980. Éramos basicamente um cafezal e construímos um sistema industrial bastante sofisticado. Após, com a década perdida, seguida dos anos FHC e Lula, tivemos um crescimento industrial medíocre - e setores e cadeias produtivas foram destruídos. Entre 2002 e 2010, foi medíocre o crescimento da indústria de transformação, comparado à evolução da agropecuária e da mineração. O professor Reinaldo Gonçalves chama a atenção para o processo de "desindustrialização", mediante a substituição negativa de produção interna por importações. É dramática a opção brasileira de ser um "celeiro do mundo" sendo um país onde ampla fração da população passa fome. É dramática a migração de força de trabalho brasileira para o exterior, agora estancada pela crise mundial.
É uma salada o conceito de Bric. Pode servir apenas para massagear o nosso "ego" com uma retórica inconsistente de sucesso. Além da extensão territorial e da população, temos características radicalmente distintas da Rússia, da Índia e da China. Nosso minério de ferro serve para os chineses deslocarem, com seu aço, o produto brasileiro do Mercosul. É terrível, em longo prazo, a situação social da Índia. A Rússia sobrevive com petróleo e gás, e tenta integrar-se à Europa faminta de energia. Nós temos o melhor balanço energético do mundo e um enorme potencial hidrelétrico e petrolífero, porém não sabemos utilizá-lo estrategicamente; não temos um modelo de desenvolvimento.
O pátio das montadoras acumula quase 400 mil veículos. É o maior número, desde 2008. As vendas de importados cresceram 28,6% em agosto, em relação ao ano passado, contra a queda de 0,7% de veículos novos produzidos no Brasil. A maioria provém da Argentina e do México (o Brasil isenta esses veículos da tarifa de 35%; o Fiat 500 oriundo do México custa bem menos que o importado da Polônia). O complexo metal-mecânico é, hoje, uma caricatura do sonho industrializante de Juscelino Kubitschek, que queria a indústria de autopeças e componentes. A medida da Presidência determina um mínimo de 65% de componentes produzidos no Brasil, ainda que abrindo mão da exigência de empresas sob controle de capital nacional. Sugeriria um compromisso progressivo até 90%, pois, sendo uma pretensão da Presidência o desenvolvimento científico e tecnológico, convém alertar que o motor e os componentes mais sofisticados (com informática agregada) serão importados.
O modesto e tímido passo para reservar o mercado brasileiro para a mão de obra nacional está sendo demonizado. Espero que a presidência não recue: mantenha (e amplie) o protecionismo para o conjunto de outras atividades industriais brasileiras ameaçadas. 

Zero e Um

Vladimir Safatle
 Na Folha de São Paulo

Há tempos, as pesquisas em inteligência artificial procuram criar um computador que tenha a complexidade de um cérebro humano.
Bem, certos setores do debate nacional de ideias conseguiram o inverso: criar cérebros que parecem mimetizar as restrições de um computador. Pois eles são como hardwares que suportam apenas um pensamento binário, onde tudo é organizado a partir de "zero" e "um".
De fato, o Brasil tem de conviver atualmente com debates onde o mundo parece se dividir em dois. Não há nuances, inversões ou possibilidades de autocrítica.
Jean-Paul Sartre costumava dizer que o verdadeiro pensamento pensa contra si mesmo.
Este é, por sinal, um bom ponto de partida para se orientar em discussões: nunca levar a sério alguém incapaz de pensar contra si mesmo, incapaz de problematizar suas próprias certezas devido à redução dos argumentos opostos a reles caricatura.
Afinal, se estamos no reino do pensamento binário, então só posso estar absolutamente certo e o outro, ridiculamente errado. Daí porque a única coisa a fazer é apresentar o outro sob os traços do sarcasmo e da redução irônica. Mostrar que, por trás de seus pretensos argumentos, há apenas desvio moral e sede de poder.
Isso quando a desqualificação não passa pela simples tentativa de infantilizá-lo. Alguns chamam isso de "debate". Eu não chegaria a tanto.
Infelizmente, tal pensamento binário tem cadeira cativa nas discussões políticas.
Se você critica as brutais desigualdades das sociedades capitalistas, insiste no esvaziamento da vida democrática sob os mantos da democracia parlamentar, então está sorrateiramente à procura de reconstruir a União Soviética ou de exportar o modelo da Coreia do Norte para o mundo.
Se você critica os descaminhos da Revolução Cubana ou a incapacidade da esquerda em aumentar a densidade da participação popular nas decisões governamentais, criando, em seu lugar, uma nova burocracia de extração sindical, então você ingenuamente alimenta o flanco da direita.
Esse binarismo só pode se sustentar por meio da crença de que nenhum acontecimento ocorrerá. Tudo o que virá no futuro é a simples repetição do passado. Não há contingência que possa me ensinar algo. Só há acontecimento quando este reforça minhas certezas.
O resto é "fogo-fátuo" e conspiração. É possível encontrar modelos desse raciocínio à esquerda e à direita. No entanto não precisamos de nenhum deles.
Precisamos de um pensamento com a coragem de admitir acontecimentos que nos desorientam. Pois -e este é um dos elementos mais impressionantes da vida- quando fechamos os olhos para tais acontecimentos, eles, de fato, desaparecem.

Suportar a Verdade

Por Vladimir Safatle
Na Folha de São Paulo


Nos próximos dias, o governo deve conseguir aprovar, no Congresso, seu projeto para a constituição de uma Comissão da Verdade. O que deveria ser motivo de comemoração para aqueles realmente preocupados com o legado da ditadura militar e com os crimes contra a humanidade cometidos neste período será, no entanto, razão para profundo sentimento de vergonha.
Pressionado pela Corte Interamericana de Justiça, que denunciou a situação aberrante do Brasil quanto à elucidação e punição dos crimes de tortura, sequestro, assassinato, estupro e ocultação de cadáveres perpetrados pelo Estado ilegal que vigorou durante a ditadura militar, o governo brasileiro precisava mostrar que fizera algo.
No caso, "algo" significa uma Comissão da Verdade aprovada a toque de caixa, sem autonomia orçamentária, sem poder de julgar, com apenas sete membros que devem trabalhar por dois anos, sendo que comissões similares chegam a ter 200 pessoas.
Tal comissão terá representantes dos militares, ou seja, daqueles que serão investigados. Como se isso não bastasse, a fim de tirar o foco e não melindrar os que se locupletaram com a ditadura e que ainda dão o ar de sua graça na política nacional, ela investigará também crimes que porventura teriam ocorrido no período 1946-64. Algo mais próximo de uma piada de mau gosto.
Um país que, na contramão do resto do mundo, tende a compreender exigências amplas de justiça como "revanchismo" não tem o direito de se indignar com a impunidade que se dissemina em vários setores da vida nacional.
Aqueles que preferem nada saber sobre os crimes do passado ainda estão intelectualmente associados ao espírito do que procuram esquecer.
O povo brasileiro tem o direito de saber, por exemplo, que os aparelhos de tortura e assassinato foram pagos com dinheiro de empresas privadas, empreiteiras e multinacionais que hoje gastam fortunas em publicidade para falar de ética. Ele tem o direito de saber quem pagou e quanto.
Esta é, sem dúvida, a parte mais obscura da ditadura militar. Ou seja, espera-se de uma Comissão da Verdade que ela exponha, além dos crimes citados, o vínculo incestuoso entre militares e empresariado. Vínculo este que ajuda a explicar o fato da ditadura militar ter sido um dos momentos de alta corrupção na história brasileira (basta lembrar casos como Capemi, Coroa Brastel, Lutfalla, Baumgarten, Tucuruí, Banco Econômico, Transamazônica, ponte Rio-Niterói, relatório Saraiva acusando de corrupção Delfim Netto, entre tantos outros).
Está na hora de perguntar, como faz um seminário hoje no Departamento de Filosofia da USP: Quanta verdade o Brasil suporta?

Voltando...

Vou, novamente, tentar voltar a publicar aqui no blog. Reinicio publicando três textos: dois de Vladimir Safatle, filósofo, colunista da Folha de São Paulo, e um de Carlos Lessa, economista, ex-Presidente do BNDES. 
Os dois primeiros textos, publico especialmente por apresentarem uma reflexão que pode estabelecer marcos para pensar de uma forma menos simplista - dado pela maioria - o tema "como enfrentar a corrupção". Isto embora nenhum dos dois trate especificamente deste tema. 
A maioria, e em particular pela "grande" mídia, traça uma relação direta, linear e praticamente exclusiva, da corrupção com os políticos. Portanto, nesta linha, menos políticos=menos corrupção. Os políticos, nesta versão, deveriam ser substituídos por técnicos. No texto sobre a Comissão da Verdade, intitulado "Suportar a Verdade", Safatle nos lembra que uma nuance desta saída já foi urdida no passado, em uma página deletéria da história brasileira, onde militares (técnicos da guerra, não?) substituiram políticos democraticamente eleitos, e tudo o que não se produziu foi redução da corrupção:
"Esta é, sem dúvida, a parte mais obscura da ditadura militar. Ou seja, espera-se de uma Comissão da Verdade que ela exponha, além dos crimes citados, o vínculo incestuoso entre militares e empresariado. Vínculo este que ajuda a explicar o fato da ditadura militar ter sido um dos momentos de alta corrupção na história brasileira (basta lembrar casos como Capemi, Coroa Brastel, Lutfalla, Baumgarten, Tucuruí, Banco Econômico, Transamazônica, ponte Rio-Niterói, relatório Saraiva acusando de corrupção Delfim Netto, entre tantos outros)."

No outro texto, aparece uma pista sobre o caminho que poderíamos tomar para enfrentar, em nível político, o traumático tema da corrupção. Qual a construção institucional bloqueada, na esquerda e na direita do espectro político, a ponto de sequer entrar nas discussões sobre reforma política?

"Se você critica as brutais desigualdades das sociedades capitalistas, insiste no esvaziamento da vida democrática sob os mantos da democracia parlamentar, então está sorrateiramente à procura de reconstruir a União Soviética ou de exportar o modelo da Coreia do Norte para o mundo.
Se você critica os descaminhos da Revolução Cubana ou a incapacidade da esquerda em aumentar a densidade da participação popular nas decisões governamentais, criando, em seu lugar, uma nova burocracia de extração sindical, então você ingenuamente alimenta o flanco da direita."

O terceiro texto, de Carlos Lessa, publico por apresentar, como pano de fundo, a promíscua cruza entre a "grande" mídia e empresas privadas anunciantes (no caso particular, as importadoras de automóveis). Nesse texto, Carlos Lessa desnuda, sutilmente, como uma opinião interessada traveste-se de opinião dirigida exclusivamente para a pridução do bem comum.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Lula, Dilma e o futuro do Brasil

Emir Sader
Publicado originalmente no Blog do Emir


Os brasileiros foram decidindo, ao longo dos últimos anos, o tipo de país que queremos. Lula tornou-se o presidente de todos os brasileiros, ancorado em um modelo econômico e social de democratização do país. Reformulou o modelo econômico e o acoplou indissoluvelmente a políticas sociais de distribuição de renda, de criação de emprego e de resgate da massa mais pobre do país. Dilma pretende consolidar essa hegemonia também no plano político.



Mas a questão essencial, aberta, sobre o futuro do Brasil, não se dará nesses planos: o modelo econômico, submetido a difíceis e inevitáveis readequações, será esse, com aprofundamento e extensão das politicas sociais. A possibilidade do governo consolidar sua maioria e de se intensificar e estender a sangria da oposição, é muito grande.



A questão fundamental que decidirá o futuro do Brasil se dá no plano dos valores. Nosso país foi profundamente transformado em décadas recentes. Esgotado o impulso democrático pela frustração de termos um governo que democratizasse o país não apenas no plano político e institucional, mas também nas profundas estruturas injustas e monopólicas geradas e/ou consolidadas na ditadura, sofremos a ofensiva neoliberal dos governos Collor, Itamar e FHC, que não apenas transformaram o Estado e a sociedade brasileiros, mas também os valores predominantes no país.



O resgate no plano da economia e das relações sociais que o governo Lula logrou - e a que o governo Dilma dá continuidade – não afetou os valores predominantes instalados na década anterior. O justo atendimento das necessidades de acesso aos bens e serviços básicos de consumo da massa mais pobre da população foi acompanhada, pela retomada da expansão econômica, pela continuidade e a extensão dos estilos de consumo e dos valores correspondentes gerados no período anterior.



Que valores são esses? Eles se fundamentam na concepção neoliberal da centralidade do mercado em detrimento dos direitos, do consumidor em detrimento do cidadão, da competição em detrimento do justo atendimento das necessidades de todos. É o chamado “modo de vida norteamericano”, que se difundiu com a globalização e com a hegemonia mundial que os EUA conquistaram no final da guerra fria, com o fim do mundo bipolar e sua ascensão a única potencia global.



Trata-se de uma visão do mundo não centrada nos direitos, na justiça, na igualdade, mas na competição entre todos no mercado, esse espaço profundamente desigual e injusto, que não reconhece direitos, que multiplica incessantemente a concentração de riqueza e a marginalização da grande maioria.



A extensão do acesso ao consumo para todos e o monopólio dos meios de comunicação – concentrados em empresas financiadas pelos grandes monopólios privados – favoreceram que as transformações econômicas e sociais não tivessem desdobramentos no plano da ideologia, dos valores, no plano cultural e educativo. No momento em que a ascensão social das camadas pobres da população ganha uma dimensão extraordinária, o tema dos valores que essas novas camadas que conseguem, pela primeira vez, ter acesso a bens fundamentais, fica em aberto que valores serão assumidos por esses setores, majoritários na sociedade brasileira.



Não por acaso setores opositores, em meio a uma profunda crise de identidade, tentam apontar para essas camadas sociais ascendentes como seu objetivo, para buscar novas bases sociais de apoio. E o próprio governo tem consciência que na disputa sobre os valores desses setores ascendentes se joga o futuro da sociedade brasileira.



Há várias questões pendentes, preocupantes, com que o governo Dilma se enfrenta. As readequações da política econômica não conseguiram ainda dar conta da extensão dos problemas a enfrentar: taxas de juros altas e em processo de elevação, desindustrialização, riscos inflacionários, insatisfação com o aumento do salario mínimo – para citar apenas alguns.



Da mesma forma que as condições em que se dão obras do PAC revela como a acelerada busca dos objetivos do plano não levou devidamente em consideração as condições a que as empreiteiras submetem as dezenas de milhares de trabalhadores das obras mais importantes do governo federal. Jirau, Santo Antonio, Belo Monte – são temas que estão longe de ter sido devidamente equacionados.



As mudanças, mesmo se de nuance, na politica externa, suscitam perguntas sobre se a equilibrada formulação de perseguir o respeito aos direitos humanos sem distinção do país, se reflete na realidade, quando inseridas em um mundo extremamente assimétrico, em que, por exemplo, o Irã é denunciado, enquanto os EUA – por Guantánamo – e Israel – pela Palestina – não são tratados da mesma forma. Em que a Líbia é bombardeada, enquanto se trata de maneira diferenciada a países em que se dá o mesmo tipo de movimento opositor, como o Iémen e o Bahrein, para citar apenas alguns casos. Se iniciativas que impeçam que se trate, objetivamente, de dois pesos, duas medidas, não forem tomadas, o equilíbrio que se busca não se refletirá no conflitivo e desequilibrado marco de relações internacionais.



Mas a questão estrategicamente central - mencionada anteriormente - é a questão das ideias, dos valores, da cultura, das formas de sociabilidade. Nisso, as dificuldades na politica cultural (retrocessos, isolamento politico, ausência de propostas, falta de consciência da dimensão da politica cultural no Brasil contemporâneo), na educativa - com a indispensável e estreita articulação entre politicas educativas e culturais - e o seu desdobramento fundamental nas politicas de comunicação, são os elementos chave. Com a integração das políticas sociais – do Bolsa Família às praças do PAC -, das politicas de direitos – dos direitos humanos aos das mulheres e de todos os setores ainda postergados no plano da cidadania plena – deveria ir se constituindo uma estratégica ampla e global para promover e favorecer formas solidárias e humanistas de sociabilidade. Para que estejamos a favor do governo não apenas porque nossa situação individual está melhor, mas porque o principal problema que o Brasil arrasta ao longo do tempo – a desigualdade, a injustiça social, a marginalização das camadas mais pobres – tem tido respostas positivas e sua superação é o principal objetivo do governo.



Foi criada no Brasil uma nova maioria social e politica, que elegeu, reelegeu Lula e elegeu Dilma. Trata-se agora de consolidar essa nova maioria no plano das ideias, dos valores, da ideologia, da cultura. Esse o maior e decisivo desafio, que vai definir a fisionomia do Brasil da primeira metade do século XXI.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Texto do Enéas de Souza sobre as duas grandes adversidades do governo Dilma

O texto abaixo, "As duas Grandes Adversidades do Governo Dilma", serve como um excelente balisador para acompanhar a trajetória que desenvolverá o governo Dilma. Segundo Enéas, para concretizar seu projeto nacional o governo Dilma terá que superar duas adversidades: as complicações nascidas de uma nova etapa de uma nova ordem política e econômica mundial - com implicações sobre a estratégia de inserção internacional do Brasil - e um cenário doméstico de intensificação das lutas sociais, em boa parte fruto dos sucessos obtidos pela etapa anterior do projeto político a que se filia: o governo Lula. 

A hipótese central de Enéas é que "para encarar essa dupla adversidade, Dilma tem que contar com o Estado." É com ele que se encara o pesado jogo das disputas na arena política e econômica internacional e, também, é ele o único com capacidade de "organizar" as disputas sociais internas.

O problema é que a organização estatal existente no Brasil não é apropriada para enfrentar, com a devida força e competência, a dupla adversidade que se apresenta. Segundo Enéas: 

"o Estado não conseguiu dar um salto próprio, nem conseguiu realizar uma parceria hegemônica com o setor privado, capaz de atuar no interesse nacional e não no interesse dos grupos particulares. Por isso, não tem forças para poder controlar o câmbio, nem definir positivamente a taxa de juros, nem ter uma política econômica global, etc."

Este salto estaria esbarando na "resistência dos dominantes e nas múltiplas questões que se agravam no país". Organizar  e por em operação uma estratégia clara e mudar o Estado de patamar é o primeiro e grande problema. A de Lula já não serviria mais e, para Enéas, o governo Dilma ainda não conseguiu estabelecer, operar, a sua:

"Seja porque as relações das forças sociais nacionais e internacionais não permitem; seja porque o governo ainda está se instalando; seja porque ainda está enfraquecido pela ideologia neoliberal que teve vigência desde os anos 90; seja porque, na luta internacional, o modelo chinês de presença do Estado não encontrou ainda caminho de expansão; seja porque é preciso novamente acumular forças para tentar progredir para uma nova organização estatal(...)" 

 O governo Dilma tem então, a dura tarefa de reorganizar o seu Estado em meio a reorganização (ainda com destino controverso, como revelam as análises diversas de gente como Arrighi, Wallertein e Fiori, embora exista o consenso de que não será unipolar) da ordem política e econômica mundial e do latente aumento das tensões sociais internas ao Brasil. Não é pouco...

AS DUAS GRANDES ADVERSIDADES DE DILMA Por Enéas de Souza

1)As novas questões do Brasil passam pela reordenação de sua política de longo e de curto prazo. Na época de Lula tivemos a passagem, com o olho bem aberto, de objetivos imediatos, marca de FHC dominado pelo neoliberalismo, para um tratamento estratégico dos dois termos temporais citados, definidos por um projeto nacional. O objetivo era sair do labirinto de políticas de duração exígua, concepção do setor financeiro, rumo a uma inserção do Brasil na ordem econômica da globalização. Um futuro mais claro à frente com uma novidade substancial: uma política econômica de melhoria da renda e do emprego. Fazia parte deste projeto a presença do país como um ator de média estatura na política externa, alvo que foi plenamente atingido, tanto que Lula se tornou a grande figura da política mundial em 2010.



2) É preciso ver que as ações na realidade externa são expressões do lado de dentro da sociedade, com uma dose de pimenta dada pelo Estado. O jogo dos grupos sociais tinha se alterado na arena de combates do Brasil durante a primeira década do século XXI. Uma força vital começou a desaguar no governo lulista através do apoio das classes menos favorecidas, por causa da nova formulação da política econômica. E esta força voluptuosa cresceu diante da articulação/desarticulação financeira e produtiva, sobretudo porque esta última área, insatisfeita com a imperiosidade das finanças, aderiu a um projeto mais produtivista, mais de acordo com a facção social que Lula representava. E o grande emblema dessa mutação foi José de Alencar, figura que revelou muito bem essa faceta, pondo uma garantia e um cimento entre a produção e os trabalhadores. Cabe destacar igualmente que as finanças perderam terreno, pois tiveram uma paralisia na sua aliança internacional/nacional por ocasião da crise de 2007. A divergência dos empresários, a associação capital produtivo/trabalho e o crescimento da figura da população transformaram o campo da ação política de Lula.


3) O tempo é algoz implacável dos homens e das sociedades. E vai alterando as suas configurações, uma vez que ele se opõe a si próprio. Como a água, toma a forma de outros recipientes, de outros copos, de outros cálices. Então, o mundo, assumindo a fisionomia do rio de Heráclito, muda de forma permanente. A consequência é que Dilma encontrou, após a eleição, uma dupla adversidade no plano de vôo da nação. A primeira aparece no campo externo: o mundo apresenta uma enredada mundialização em tumulto. Aqui há uma acentuada presença ativa da China, acumulando triunfos políticos e econômicos, com uma estratégia nítida e insistente. Aqui há também um desequilíbrio americano, com ponteiros domésticos em desacerto, buscando fazer uma revisão dolorosa de sua política externa unilateral e militar, tentando barrar os revezes financeiros privados e públicos, e percebendo uma decadência produtiva e mercantil a exigir uma metamorfose tecnológica e empresarial. Ou seja, a geo-economia e geopolítica do planeta aquecem a temperatura dos conflitos. Desenha-se a figura de uma rota de futura bi-polaridade, atravessada, Deus dirá se é verdade, por tintas e cores de múltiplas influências, pois a Índia, a Rússia e o Brasil e tantos outros, tratam de alterar suas posições relativas no conjunto internacional em movimento.


4) Dito de outra forma: Dilma está em face de uma outra etapa de uma nova ordem política e econômica mundial. Tem que ter cautela para agir. E para bem agir, há que pesar os caminhos retos, sinuosos, ou em ziguezague, o mundo não tem mais a cara da unipolaridade americana. Ele está mais complexo e mais à beira do precipício. Os quatro cavaleiros do apocalipse ainda estão cavalgando: crise financeira em desdobramento, mudança do tabuleiro dos conflitos políticos, retorno do movimento social para a ultra-direita e ideologia selvagem dos cortes sociais.


5) Esmiuçando a segunda adversidade, que tem origem nas discórdias internas, vê-se que Dilma está diante de um quadro de luta social mais candente. O fogo do caldeirão já está aceso. Os banqueiros que estavam felizes, com FHC e com Lula, viram, no final do Lula II, as astúcias desse último. A política econômica escorada nos interesses dos bancos e do capital internacional tinha agora um novo sócio; sócio minoritário, de fato, mas novo sócio: as classes trabalhadoras e as deserdadas. Lula tinha feito uma manobra fantástica, com as sobras dos recursos dirigidos às finanças, achou uma janela entreaberta. E culminou por construir uma política coerente para as classes pobres (desde uma política de aumento real do salário mínimo, do programa Bolsa-Família até o começo de uma outra política de habitação). Hoje, estes passos elevaram as tensões sociais de maneira muito forte. Os bancos retornaram, junto com um novo suspiro das finanças internacionais, com o desespero da grande imprensa e de parte dos empresários produtivos ameaçados pela China, a forçarem uma política mais conservadora. Na verdade, o objetivo dos bancos é retornar e desenvolver uma política econômica de figurino financeiro. Em resumo: Dilma está diante desta onda de revival neoliberal, onda do Ocidente e onda brasileira.


6) Por sua vez, as classes trabalhadoras e setores marginalizados, da cidade e do campo, querem avançar. Mas seu desejo está mais para um desejo de melhoria de vida atual, ou seja, desejam novas e mais mercadorias – de moradias às carros – ou seja, um considerável e justo aumento do padrão de vida – e imediatamente. Parece não existir assim espaço, na hora presente,  para uma correção de política na direção de uma maior socialização e para uma nova sociedade que seja mais igualitária, que tenha uma cultura menos banal, que tenha uma passagem para o longo prazo diferente da continuidade desse processo em vigor. Nesse sentido, a luta na sociedade se tornou mais aguçada que no tempo de Lula. Para alterar o rumo, há que traçar uma política que concilie os problemas de agora com a política de futuro. Mas as finanças querem acabar com a política e a estratégia de longo alcance, pois a eles só interessam os ganhos do momento. Esse festival de aporte de capitais internacionais é o que interessa, pois é aí que vai o seu objetivo rentista.


7) Para encarar essa dupla adversidade, Dilma tem que contar com o Estado. E a pergunta é: onde está o Estado? No final do Lula II, como conseqüência inclusive da ação do PAC, o curso estatal se dirigia para uma maior intervenção na economia. Mas o combate das forças sociais tem detido o seu crescimento, já que ele esbarra na resistência dos dominantes e nas múltiplas questões que se agravam no país. Infraestrutura pública (logística e urbana), financiamento do investimento, formação de quadros burocráticos, decomposição do quadro político-partidário, retorno da pressão financeira, etc., etc. Dilma, nesse ponto, está dando passos cautelosos, ao menos na minha consideração. Há uma floresta enevoada na sua frente. Daí a dificuldade de estabelecer, através de uma análise precisa e de uma inteligência esperta, uma estratégia coerente, articulando o longo e curto prazo. E essa observação é nítida, uma vez que a estratégia antiga, a dos tempos de Lula, tem que ser alterada. E Dilma sabe disso e não pode errar, a pressa pode levar a uma terceira adversidade, o atraso do Brasil em relação aos seus parceiros e ao avanço social interno. Há ciladas por toda parte. Na política econômica presente, por exemplo, a gente constata juros elevados, taxa de câmbio em posição contrária à produção, uma desindustrialização inquietante, uma inflação mundial que, por enquanto, está controlada, mas que está aí com a máscara da ameaça.


8) A conclusão: o Estado não conseguiu dar um salto próprio, nem conseguiu realizar uma parceria hegemônica com o setor privado, capaz de atuar no interesse nacional e não no interesse dos grupos particulares. Por isso, não tem forças para poder controlar o câmbio, nem definir positivamente a taxa de juros, nem ter uma política econômica global, etc. O governo de Dilma está agindo cautelosamente para não perder os pontos conquistados. Sente-se, portanto, que o Estado não mudou de patamar. Seja porque as relações das forças sociais nacionais e internacionais não permitem; seja porque o governo ainda está se instalando; seja porque ainda está enfraquecido pela ideologia neoliberal que teve vigência desde os anos 90; seja porque, na luta internacional, o modelo chinês de presença do Estado não encontrou ainda caminho de expansão; seja porque é preciso novamente acumular forças para tentar progredir para uma nova organização estatal, tanto para aumentar as conquistas sociais internas como para encarar o pesado jogo das disputas entre os diferentes Estados. Por qual a razão seja, inclusive levando em conta todas juntas, o Brasil de Dilma está em face das adversidades descritas e da necessidade de rearticular uma política e uma estratégia do dia a dia com o longo prazo. Logo, precisa pesar as forças em contenda e vislumbrar com clareza as oportunidades que surgirão. Por isso, o gesto político fundamental nesta hora indefinida é cautela. Cautela por tática e não por medo. Cautela para dar o passo certo no momento adequado. Está aí exposto o nervo frontal do desafio.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Entrevista do governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro com blogueiros

Hoje pela manhã, no salão Alberto Pasqualini do Palácio Piratini (sede do governo do Estado do Rio Grande do Sul), o governador Tarso Genro concedeu entrevista à blogueiros do Rio Grande do Sul. Vou destacar aqui o papel que o governador reconheceu na blogosfera.

A entrevista esteve em linha com a preocupação do governo do Estado de ir além da garantia de liberdade de opinião na sociedade, preocupando-se também com o incentivo a ampliação dos canais de circulação da opinião. Poder expressar opinião com liberdade, sem constrangimentos, é fundamental para qualquer sociedade que se pretenda democrática. Fundamental, mas não suficiente. Em uma sociedade verdadeiramente democrática aqueles que desejam ver expressas suas idéias livremente produzidas devem encontrar facilmente condições para difundi-las. Assim, a opinião pública poderia aparecer com toda a sua diversidade. 

Infelizmente, em nossa sociedade a grande mídia não faz circular a opinião em toda a sua diversidade.

Para o governador do Rio Grande do Sul, diante disto, a blogosfera assume papel fundamental como um instrumento para promover a democratização do acesso aos meios de circulção da opinião, seriam um "oxigênio do processo democrático, do processo de formação de opinião". Assim entendi sua posição de incentivo a atuação dos blogueiros e a constituição de interlocção direta com esses.

Segundo o governador Tarso Genro, esta ação dá seguimento ao processo de transformação das relações sociais aberto pelo governo Lula. Nesse governo todos os cidadãos foram postos na mesma altura. Onde antes só eram ouvidos os poderosos (econômicamente, em especial), agora são ouvidos todos os grupos sociais em pé de igualdade.

Por fim, Tarso Genro lembrou que que os efeitos das ações de todo agente político não são totalmente diretos, uma vez que mediados pelos meios de comunicação. Daí  a importancia, para todo agente político de levar em conta, ao agir, todos os meios de comunicação. Diante da mediação permanente da midia, a comunicação é o espaço da política hoje.

Esperemos as cenas dos próximos capítulos. Como o Conselho de Comunicação, prometido para até o final deste ano.

Novos tempos, com certeza...